A bela e trágica história de Hellé Nice

Hoje não é muito comum encontrar mulheres participando de corridas, como a Fórmula 1. Mas nos anos 30, um dos ícones do automobilismo mundial era a famosa, e injustiçada, pilota francesa Hellé Nice.

Nascida em 15 de dezembro de 1900, Mariette Hélène Delangle saiu de sua comunidade natal Aunay-sous-Auneau e foi para Paris com 16 anos. Na cidade luz, a francesa adotou o nome artístico Hellé Nice e virou modelo erótica do artista Rene Carrere, que a encorajou a também fazer aulas de ballet.

A francesa começou a dançar em cabarés, cassinos e, quando ganhou popularidade, ela comprou seu primeiro carro. Hellé fez amizades com alguns pilotos e em 1921 tentou ingressar em sua primeira corrida, mas foi barrada por ser mulher.

Enquanto não conseguia disputar nenhuma corrida, a carreira artística da francesa disparou em toda a Europa. Uma paixão por velocidade e adrenalina entrou em seu coração, o que a fez começar a praticar esqui.

Em 1929, enquanto esquiava, uma avalanche foi em direção da artista. O acidente acabou fraturando seu joelho, o que antecipou a aposentadoria de sua carreira de dançarina, além de deixá-la mais longe do esqui.

1929 – As primeiras voltas

No dia 2 de julho de 1929 – mesmo ano do acidente que a afastou dos palcos – ocorreu o primeiro Grand Prix Feminino, que fez parte do Journee Feminine de l’Automobile – um fim de semana de corridas só para as mulheres.

Pilotando um Omega-Six de oito cilindros que chegava a 120 km/h, Hellé Nice treinava dando 10 voltas, duas vezes por dia. Mesmo com uma noite regrada de bebidas e sexo, a dedicação da francesa a fez vencer a corrida e chamou a atenção do público.

O jornal L’Intransigeant disse: “a condução foi magnífica: ninguém que a visse poderia argumentar que as mulheres dirigem menos do que os homens”. 

Após sua tão esperada vitória, a francesa foi convidada para ser a garota propaganda da marca de cigarros Lucky Strike. Além disso, foi chamada para correr pela equipe da Bugatti e aceitou imediatamente. 

A parceria com a montadora trouxe bons frutos para ambos os lados. Logo após ingressar na equipe da montadora, Hellé Nice conquistou o campeonato dos atores – uma importante competição que tinha homens e mulheres. 

A rainha recebe sua coroa

Ainda em 1929, a francesa bateu o recorde feminino de velocidade. Ela chegou a 197,7km/h em uma Bugatti 35B de 130cv, em um percurso de 10 quilômetros na pista de Montlhery, nos arredores de Paris. O feito foi tão grande que os jornais na época a nomearam de Rainha da Velocidade.

Em 1930, Hellé foi para os EUA para participar de mais algumas corridas. Ela foi apresentada ao Ettore Bugatti, pelo Philippe Rothschild – seu amante na época. Na América ela assinou um contrato com a Esso e ganhou o título de Rainha Bugatti.

Agora mais famosa, Nice voltou para a Europa em 1931, mais determinada do que nunca para ser levada a sério como pilota de grandes prêmios. Em um ambiente muito masculino, Hellé não dava passagem para homem algum. Durante a década de 30, a corredora colecionou, além de amantes, diversas vitórias.

Nice foi protagonista de uma das corridas mais emblemáticas da história do automobilismo. Em 1933, aconteceu o Grande Prêmio de Monza, uma corrida que ficou conhecida como o Domingo Negro. Hellé ficou em terceiro lugar, mas o que marcou o evento foi a morte de três pilotos em um acidente.

Ainda em 33, a francesa saiu da Bugatti e migrou para a equipe da Alfa Romeo, onde começou uma nova fase em sua carreira.

A rainha no Brasil

Rio de Janeiro

Acompanhada do mecânico e amante, Arnaldo Binelli, Hellé Nice desembarca no Brasil para disputar duas corridas, uma em São Paulo e outra no Rio de Janeiro. Sua primeira parada foi na Cidade Maravilhosa, onde foi recebida em um almoço no Automóvel Clube do Brasil.

Em 28 de maio ela compareceu na Rádio Tupi do Rio de Janeiro e, em português, leu a seguinte mensagem:

Boa Noite. Estou muito contente em poder utilizar-me do Cacique do Ar para saudar o povo do Brasil. Sinto-me encantada com esta terra tão bonita e cativa do tratamento recebido dos brasileiros, sempre tão gentis e cavalheiros. Aos automobilistas do Brasil minha amizade sincera. Aos ouvintes da PRG-3 minhas saudações.” 


Suas fotos sensuais e sua vida amorosa agitada causavam uma estranheza, mas a francesa causou um reboliço no Brasil pelo fato de fumar em público e usar um maiô de duas partes. Apesar das polêmicas, a francesa conquistou o coração do publico brasileiro. 

Sendo a única mulher que disputou o Circuito da Gávea – naquele ano -, a francesa não decepcionou o público. A bordo de um Alfa Romeo 8C 2300 Monza, de oito cilindros em linha de 2336 cc, a corredora disputou o Trampolim do Diabo largando no primeiro pelotão. Na frente de, aproximadamente, 500 mil pessoas, Nice chegou ao terceiro lugar da prova, mas acabou abandonando a corrida na 11ª volta.

São Paulo

Após a corrida no Rio de Janeiro, Hellé Nice desembarca em São Paulo para disputar o Primeiro Grande Prêmio da Cidade de São Paulo. Ao chegar na capital paulista a francesa declarou: “Estou encantada! O Brasil é maravilhoso!”, sem saber que 10 dias após a entusiasmada declaração de amor pelo Brasil ela passaria por um dos maiores desafios de sua carreira.

No dia 12 de julho de 1936, começa a corrida de sua vida, ou como os jornais destacaram “A Corrida da Morte”. Ao lado de Chico Landi, a corredora alcançou em terceiro lugar. Seu Alfa Romeo azul, número 34, chamou a atenção do público, que aplaudia a francesa sempre que passava perto das arquibancadas.

Na última volta, Nice continuava em terceiro lugar. Na reta final, a menos de 7 metros de distância de Manuel de Teffé, a corredora se acidentou na Avenida Brasil. Especula-se que a francesa tentou desviar de um militar que tentou tirar um fardo de feno que foi jogado na pista.

O Alfa Romeo desgovernado voou para cima da população que assistia os momentos finais da corrida. O acidente feriu 35 pessoas e causou a morte de seis – quatro policiais e dois civis. Nice foi arremessada para fora do veículo, mas sua queda foi amortecida pelo corpo de um militar que fazia a segurança do evento.

Apesar de não ter sofrido nenhuma fratura, Hellé ficou em coma por três dias e permaneceu dois meses hospitalizada. A francesa recebia constantes visitas de corredores, personalidades da época e políticos. Ela foi premiada e foi criado um campeonato de futebol em sua homenagem, o Troféu Hellé Nice de Futebol Amador.

Sua história comoveu o público paulista, na época diversas mulheres colocaram o nome de suas filhas de “Hellenice”, em homenagem a corredora. Apesar disso, o acidente fez com que muitos patrocinadores a abandonassem.

A francesa continuou correndo depois da fatalidade. Ela participou de uma prova de resistência feminina na qual dirigiu por 10 dias e 10 noites seguidas – recorde que permanece intacto até hoje.

Fim de sua carreira

Em 1939, começa a Segunda Guerra Mundial, o que causou uma pausa nas corridas na Europa. O confronto fez Hellé se recolher em sua casa na Riviera Francesa e lá permaneceu até o fim da guerra.

A fama de Nice foi tão grande que a maioria dos corredores homens aceitava a presença dela nas corridas. Durante sua carreira, se relacionou com diversos pilotos e sua beleza estonteante roubou o coração de vários homens.

Louis Chiron, um dos homens rejeitados pela corredora, não gostava de sua presença nos eventos. Em uma festa de confraternização, em 1949, antes do Circuito de Monte Carlo, Chiron espalhou um boato sobre Hellé Nice ser uma espiã nazista.

Apesar de falsos, os boatos foram aceitos pelos patrocinadores, corredores e por sua família. Nesse momento sua carreira terminou e seu nome foi esquecido e apagado dos registros históricos.

Uma das mulheres mais famosas do mundo, alguém que se relacionou com nobres e milionários, foi símbolo da liberdade feminina da década de 30 passou seus últimos dias morando em um apartamento infestado de ratos, numa região degradada de Nice. 

Seu único luxo era um casaco de pele de leopardo esgarçado, alguns troféus e recortes de jornais que falavam de suas proezas. Ela recebia ajuda de uma instituição de caridade para se alimentar e passou seus últimos anos contando histórias de seus sucessos e reclamando de um amante infiel, que ironicamente chamava de “Senhor Três Minutos”.

Em 1984, Mariette Hélène Delangle dá seus últimos suspiros aos 83 anos. Sua família não quis que ela fosse sepultada no jazigo familiar. Seu funeral foi bancado pela instituição de caridade que a ajudava, mas seu túmulo ficou sem nome até 2010. Assim termina a bela e trágica história de Hellé Nice.

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