História

A história do automóvel no Brasil em 4 atos

Conheça a história do automóvel no Brasil de um jeito especial, com direito a política, números e muitas curiosidades.

Nem é preciso dizer que a história do automóvel no Brasil é rica, tão especial a ponto de transformar diversos tipos de veículos em paixão nacional. Isso nós sabemos. Mas há formas e formas de conhecer o passado.

Para isso, tal qual em uma peça de teatro, dividimos esse texto em quatro atos, cada um com conteúdos determinantes para a história, além de atores (humanos ou não) cujos papéis foram de protagonistas, passando por coadjuvantes de luxo até chegar a figurantes que clamam por um lugar de destaque no palco.

Que comece o espetáculo!

Ato nº 1 – Primeiros passos

Todos nós provavelmente conhecemos Alberto Santos Dumont apenas como Pai da Aviação. Mas você sabia que foi por intermédio dele que ocorreu o primeiro desembarque de um carro em terras brasileiras? 

Em 1891, o navio “Portugal” ancorava no Porto de Santos trazendo um Peugeot adquirido por 1.200 francos. E quem era o comprador? Santos Dumont.

O modelo, chamado pelos franceses de voiturette, dada sua semelhança a uma charrete, tinha um pequeno motor Daimler, de 3,5 cv, dois cilindros em V e movido a gasolina. Alberto cedeu o veículo para seu irmão, Henrique, que passou a dirigi-lo na capital São Paulo.

A partir dali, a moda de ter um automóvel passava a se difundir pela cidade, na medida em que alguns figurões da sociedade paulistana entravam na fila para adquirir os seus. Tanto que, em 1903, o então prefeito Antônio Prado baixou o Ato 146, tornando obrigatórios o licenciamento e a inspeção dos veículos, estabelecendo também o limite máximo de velocidade no município: 30 km/h em áreas descampadas.

Embora os irmãos Santos Dumont tenham dado a partida nessa história, o primeiro emplacamento ficou por conta do conde Francisco Matarazzo, que teve a honra de obter a chapa número 1. A principal razão é que Henrique havia se recusado a licenciar o seu carro.

Lá fora, a Ford observava atenta os passos iniciais do Brasil no ramo, até trazer uma equipe e tornar-se, em 1919, a primeira indústria automobilística a se instalar aqui no País. A linha de montagem e o escritório foram construídos na rua Florêncio de Abreu, no centro de São Paulo.

Ato nº 2 – Desenvolvimento da indústria nacional

A instalação da Ford desencadeou a vinda de outras empresas automobilísticas ao Brasil, também em São Paulo. A começar pela General Motors, que em 1925 resolveu investir em terras tupiniquins, abrindo sua primeira fábrica no Ipiranga. 

Poucos meses depois, o Chevrolet já circulava pelas ruas da capital paulista; já em 1927 a GM dava início à instalação da fábrica em São Caetano do Sul.

Percebendo o rápido crescimento do setor, o Estado criou, em 1926, a Diretoria de Estradas de Rodagem, que resultou oito anos depois no primeiro órgão rodoviário brasileiro: o Departamento de Estradas de Rodagem (DER).

A construção de rodovias era fundamental para dar vazão à circulação dos veículos que compunham o cenário do transporte. Em 20 anos, o aumento da frota registrou um salto gigantesco. Só no estado de São Paulo, entre 1920 e 1939, o número de carros de passeio subiu de 5.596 para 43.657, enquanto o de caminhões foi de 222 para 25.858.

Os anos seguintes, contudo, foram duros para a indústria automobilística no Brasil, isso porque o mundo via-se refém da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). E um dos seus vários efeitos devastadores recaíram sobre as importações, que diminuíram substancialmente. Assim, nossa frota de veículos tornou-se ultrapassada. 

Porém, essa situação de baixa estimulou um processo de nacionalização do setor, inicialmente por meio do governo Getúlio Vargas. Foi durante sua gestão que a indústria automotiva se consolidou de fato por aqui, de modo orgânico.

Vargas proibiu a importação de veículos montados, além de promover alta taxação de peças. Paralelamente, construiu a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), cuja produção de chapas e barras de ferro e aço, por exemplo, passou a ser bastante aproveitada na fabricação dos automóveis.

Após esse empurrão, coube a Juscelino Kubitschek implantar definitivamente a indústria automotiva no Brasil. Poucos meses após assumir a Presidência, em 1956, JK criou o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia). 

Tal medida estabeleceu novas diretrizes para o setor, oferecendo incentivos fiscais em torno do chamado Plano de Metas. As novidades eram: 90% de redução para caminhões e 95% para automóveis, em peso, após quatro anos.

Ainda em 1956, a Romi iniciou a produção do Romi-Isetta, primeiro carro fabricado no Brasil. O modelo exótico era composto por uma porta, espaço para duas pessoas e 2,28 m de comprimento.

Um ano depois, veio a Kombi, com seu motor Boxer 1.200 cc, o pioneiro da Volkswagen genuinamente nacional. Em 1961, a montadora criou o Fusca 3, sedan 1.200 cc.E o resto é história. Mas antes de irmos para o próximo item, deixe o seguinte link aberto em outra guia para ler depois: dez modelos esportivos raros genuinamente brasileiros

Ato nº 3 – Primeiro carro elétrico

Muito tempo – 34 anos – antes da hoje tão badalada Tesla, o Brasil fabricou o primeiro carro elétrico da América Latina sobre um atribulado pano de fundo: a crise do petróleo, quando descobriu-se, entre outros fatores, que o petróleo era um recurso natural não renovável.

Entre outubro de 1973 e março de 1974, o preço do petróleo no mundo aumentou 400%, cujos reflexos significaram o fim do chamado “milagre econômico” da ditadura militar brasileira.

O baque na economia mundial abriu margem para alternativas, e uma das pessoas a enxergar outro caminho foi João Augusto Conrado do Amaral Gurgel. O engenheiro, que em 1969  já havia criado a primeira fabricante de automóveis 100% nacional, tornou-se também um pioneiro dos modelos elétricos. 

Ainda em 1974, em pleno auge da crise, Gurgel lançou o primeiro protótipo – um verdadeiro carrinho – no Salão do Automóvel. Surgia ali o Gurgel Itaipu E150, e 20 unidades deles passaram a rodar no ano seguinte.

Com design geométrico em forma de trapézio e capacidade para apenas duas pessoas, o carrinho tinha 2,65 m de comprimento por 1,40 m de largura, e pesava 460 kg.  Desse total, 320 kg correspondiam às baterias (uma na frente, dez atrás dos bancos, e duas debaixo do assoalho).

Agora, os inconvenientes: o motor possuía 3,2 kW (equivalente a 4,2 cv), enquanto a velocidade máxima atingia 60 km/h. A autonomia do veículo era de apenas 80 km; além disso, o Gurgel Itaipu E150 demorava 10 horas para ser recarregado.

João Gurgel pretendia iniciar a produção do Itaipu E150 já em 1975. No entanto, seu objetivo era vendê-lo na mesma faixa de preço do Fusca 1300. Essa foi a cereja no bolo para o elétrico não vingar, ficando apenas na fase do protótipo. 

Mas esse revés não apaga o fato concreto: Gurgel era um visionário. Prova disso é a cada vez mais frequente aposta na produção de veículos elétricos pelo mundo.

Ato nº 4 – Terceiro milênio

Os anos 2000 deram continuidade à lógica de produção adotada na segunda metade do século XX: sinal verde para a fabricação em massa nos polos industriais brasileiros. Para se ter uma ideia, o Brasil tornou-se o quarto maior mercado de automóveis do mundo em 2010.

Porém, a intensa energia despendida na produção automotiva não foi canalizada para setores essenciais, como a infraestrutura em transporte público. Dessa forma, não é de se espantar que, em 2014, o aumento da frota tenha feito o País registrar 1 carro a cada 4 habitantes, impulsionada por políticas de crédito e incentivos fiscais.

Ali, contudo, o Brasil já enfrentava a crise econômica que hoje ainda assola a nação. Gradualmente, a recessão passou a minar o poder de compra da população, cuja recuperação ainda parece distante, sobretudo devido à pandemia de Covid-19. 

De acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), serão produzidos 2,5 milhões de veículos neste ano, números 50% menores em relação à capacidade instalada. Em 2020, já havia sido registrada a produção mais baixa em 17 anos (2 milhões de unidades).

Virando a chave, voltamos agora a abordar carros elétricos. Isso porque, neste mês de março, o governo de Minas Gerais assinou um protocolo de intenções com a Bravo Motor Company para implantação de uma fábrica de veículos e baterias na Grande Belo Horizonte.

A construção deverá ter início em junho, com o começo das operações previsto para 2023. A empresa argentina quer entregar 22.790 unidades de carros elétricos e 43.750 pacotes de baterias, números estes para venda em território nacional e exportação. 

Embora criada na nação sul-americana, a Bravo Motor Company está sediada atualmente em Merced, Califórnia (EUA), sob o nome de ArqBravo Group.

Se isso representa uma guinada definitiva do Brasil rumo à tendência de veículos elétricos e demais alternativas menos poluentes, ainda é cedo para saber. No entanto, vale acompanhar o desenrolar dessa história que sinaliza novidades.

Estamos chegando ao fim do espetáculo. Mas, antes, é preciso destacar um último ponto.

No começo deste ano, a Ford anunciou o fechamento das suas fábricas no Brasil. Sem dúvida, um baque que pegou muita gente de surpresa. Não deixa de ser emblemático: a primeira montadora a se instalar no País encerra suas operações nele. 

Se fôssemos escolher um gênero para a peça “História do automóvel no Brasil”, qual seria? O episódio da Ford sugere a classificação da peça como uma tragédia pelo seu encerramento, talvez?

Não. No máximo, não necessariamente, a depender sempre do ponto de vista.

Afinal, os atos do teatro são uma fiel representação da vida real: íngremes, cheios de altos e baixos. O trajeto é irregular; tem longos trechos pavimentados, mas também alguns buracos; enfrenta sol, chuva, penumbra e neblina. Por essas e outras que eles se tornam tão especiais.

Fecham-se, por enquanto, as cortinas. O Brasil seguirá dirigindo sua história. No momento, apenas parou para reabastecer o tanque.

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