As lembranças agridoces de um Lada Laika

 As lembranças agridoces de um Lada Laika

Durante o ápice da Guerra Fria, em 1966, um período entre a Crise de Mísseis em Cuba e a ida do homem à Lua, o ministro soviético da indústria automotiva, Alexandre Tarasov, assinou uma parceria com a Fiat para criar a montadora do povo soviético, a AvtoVAZ, conhecida também como Lada. 24 anos mais tarde, após o Presidente Fernando Collor de Mello reabrir o mercado brasileiro para importação, em 1990, a Lada foi uma das primeiras empresas a chegar no mercado automotivo tupiniquim.

Razão

2020 – Ernane Ferreira, 49, trabalha como protético, faz próteses e aparelhos dentários, mas além de trazer o sorriso aos rostos das pessoas, ele é um homem apaixonado. Apaixonado pelo seu Lada Laika, que acabou de receber a placa preta.

Carinhosamente apelidado de Yuri – mesmo nome de Yuri Gagarin, cosmonauta soviético e primeiro homem a viajar para o espaço –, o veículo de Ernane é uma herança familiar. “Esse carro está na família desde quase zero. Meu irmão comprou ele em 92, o carro era de 90/91.”

O simpático automóvel da cor creme possui todos os opcionais disponíveis. “Eu lembro que quando meu irmão foi na loja, falaram que o carro era de testdrive. Então ele veio com todos os opcionais que tinha na época, o que hoje não é muita coisa, mas têm alguns detalhes que dificilmente você vai achar em outro Lada hoje.”

O limpador de para-brisas possuía um brucutu integrado às palhetas, os detalhes do acabamento, a ignição no lado esquerdo e, claro, as rodas brancas esverdeadas. Mas, acima de todos os detalhes, o que faz o Lada do Ernane ser um veículo especial é sua história.

“O carro foi do meu irmão. Por volta de 2000, ele se mudou para o Rio Grande do Sul e o carro ficou lá em casa guardado. Eu tinha um tio, muito próximo, que o adorava, ele sempre olhava e queria comprar. Convenci meu irmão a vender para o meu tio e intermediei a negociação.”

Pouco tempo depois de comprar o tão paquerado carro, o querido tio de Ernane faleceu. Nesse momento, o sorriso tímido foi embora. Era possível notar que ambos tinham uma relação muito bonita e sincera, uma perda que deixou cicatrizes. “Ele aproveitou muito pouco do carro e ficou na garagem da casa. Era só ele e minha tia, já com uma certa idade, ela não tinha mais paciência para cuidar do Lada.”

Às vezes um vizinho dava uma volta, para tirar a poeira do motor, mas foi apenas em 2015 que o pequeno carro soviético saiu de vez da garagem. “A minha esposa estava olhando o Facebook da família e pegou uma conversa de minha prima com o meu irmão mais velho, que era o dono desse carro. Ela perguntava onde ficava o número do chassi para poder recortar e mandar para o ferro velho! Ela ia jogar o carro inteiro no ferro velho! Aí, minha esposa, que também estava de olho no carro, me avisou que era a hora de entrar em contato com a minha prima. O carro era uma lembrança do meu tio.”

Após saber da noticia, Ernane ligou quase instantaneamente para sua prima. No primeiro fim de semana disponível, ele conseguiu um guincho e levou o automóvel para casa.

Restauração

O Laika de Ernane talvez seja o primeiro Lada placa com a preta no Brasil. O veículo chegou no mercado em 1990, como modelo 91, e serviu como test-drive até 92 quando foi vendido para seu irmão.

Apesar da montadora ter abandonado o Brasil, em 1995, sua produção continuou a todo vapor em outros países. O modelo Laika foi produzido até 2010, por conta disso a restauração do veículo não foi tão trabalhosa.

“Olha eu achei que ia sair mais caro, porque eu fui na cara e na coragem. Eu não tinha muita informação, só depois que eu peguei o carro é que eu fui me informar. Para minha surpresa, eu acho que deve ser mais fácil achar peças dele agora do que nos anos 90. Você encontra peças novas dele, eu mesmo importei várias do leste europeu, algumas de acabamento e motor. Com internet fica fácil.”

Ao buscar as partes que faltava, Ernane esbarrou com um grupo de apaixonados pelos veículos soviéticos (agora russos), o Lada Clube do Brasil. Por meio desse clube, Ferreira encontrou um mecânico especializado em carros russos. Segundo ele, o profissional trabalhava para a marca e abriu as portas da sua oficina quando a montadora encerrou suas operações.

História

Nos dias atuais, a Lada não é tão conhecida, principalmente entre os mais jovens. Por ser um automóvel incomum, geralmente é confundido com outros veículos.

“Uma vez eu estava passando por uma rua devagar aí um rapaz disse: ‘bonito, é aquele Fiat lá né’, eu falei que não era, disse que era o Lada Laika , o jovem insistiu: ‘não, é aquele Fiat lá’, ou seja eu que sou o dono do carro e ele estava tentando me convencer que o meu carro era outro.”

O veículo costuma despertar o interesse de pessoas mais velhas e já recebeu diversas propostas. “Não vendo”, é a resposta categórica de Ernane. Ao desfilar pelas ruas de São Paulo, o charmoso Laika desperta o sentimento nostálgico de quem viveu o auge dos anos 90.

Cada detalhe do carro é uma lembrança, como se fosse um álbum fotográfico sobre rodas. O rasgo no banco, um pequeno ralado no borrachão e uma fita cassete gravada pelo seu tio são algumas memórias que o veículo carrega por ai.

“Eu tenho muita lembrança do meu tio aí dentro, tem um bilhete de endereço, uma fita cassete que ele gravou. A fita é horrível, mas está aí até hoje, guardada no toca fitas, e funcionando! Eu não quis me desfazer de nenhum detalhe que meu tio deixou. Tenho até um cartão de bateria da época que ele trocou, tenho a garantia.”

O Laika, ou Yuri, é um placa preta que não faz parte de nenhuma coleção, mas sim do coração. Um veículo repleto de lembranças é o guardião de um artefato da pré-história do mundo digital: a fita cassete. Apesar de não agradar o gosto musical de Ernane, o pequeno item armazenava alguns minutos de um sertanejo modão que seu tio gravou.

Uma engenharia estranha para quem está acostumado com Spotify e YouTube, a fita é colocada aqui, um botão é girado ali e a expectativa começa. Silêncio. A fita não tocou, Ernane tirou o pequeno pedaço de plástico transparente do aparelho e seu semblante mudou na hora. Uma das extremidades da fita, a parte grudada em um carretel, arrebentou.

“Já era, também, quantos anos tem isso aqui? Desde dois mil e sei lá. Já era. Vou tentar recuperar, se o carro que é mais difícil eu recuperei… Vou recuperar a fita”.

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