“Chama eu”

 “Chama eu”

Entre os comentários sobre o lançamento da edição passada nas redes sociais, estava o pedido de Matheus Siqueira, 25 anos, balconista da Celinho Autopeças, em Pouso Alegre. Solicitação atendida. E o resultado é uma conversa sobre carreira, vida pessoal, família, pandemia e o papel central dos trabalhadores na sociedade. Confira!

“Chama eu”. Este era um dos comentários da publicação de lançamento de nossa edição passada, no Facebook. O autor: Matheus Siqueira, 25 anos, balconista da Celinho Autopeças, em Pouso Alegre (MG). Imediatamente, pela própria rede social, fomos atrás do requerente; porém, sem obter resposta.

Parecia um flerte, no qual Matheus, ao provocar, fazia-se propositalmente de difícil, testando até onde iria nossa disposição para seguir adiante. Até que, enquanto vasculhávamos seu perfil, encontramos os dados da loja onde trabalha.

Matheus garante que comentou “por comentar”; jogou a isca para ver o que acontecia, sem realmente vislumbrar um retorno. Mas será? Atitudes assim não costumam ser obra do acaso.

“Eu consumo esse conteúdo, para ficar por dentro. Mas também por um pouco de confete, porque gosto muito de falar, comentar, aproveitar o espaço”, assume, também reconhecendo que não esperava nosso contato.

O balconista de Pouso Alegre afirma ler diversas publicações relacionadas à sua área, sempre buscando ampliar o conhecimento. Em relação à Balconista S/A, Matheus se imagina no lugar dos entrevistados, traçando paralelos com situações semelhantes vividas no cotidiano.

“Sabe quando você está acompanhando uma situação engraçada, e pensa: ‘putz, isso já aconteceu comigo’? É muito legal ter essa sensação; saber que tanto as coisas boas, como as ruins que a gente passa, são vividas por outras pessoas, e o quanto é bom a gente compartilhar”, conta.

Comentário de Matheus no Facebook.

Mas, afinal, quem é Matheus Siqueira, além de um balconista curioso e proativo? Ele não só narrou para nós a sua trajetória, como também mergulhou em reflexões sobre a profissão, a vida e a pandemia de Covid-19.

“Desde que eu me entendo por gente, estou em oficina. Meu pai é mecânico, meu irmão também. Então, desde os 10 anos eu já ajudava meu pai. Trabalhei com ele entre 2005 e 2012”, recorda Matheus.

Dali, migrou para a Celinho Autopeças, onde começou como estoquista, até chegar ao atual cargo. Sua vida, portanto, se resume ao universo da mecânica e da reposição automotiva, o suficiente para constatar que existe um tempo considerável de experiência, a ponto de afirmar qual a fórmula certa para ser um bom profissional.

“Olha… não se tem ao certo uma fórmula. É muito particular. Mas a questão do conhecimento vem tanto da prática, como da teoria. Algumas coisas a gente aprende no agito do balcão; outras, temos que pesquisar. Acho muito importante estar atento às novidades da indústria automotiva, e na forma como os mecânicos gostam de ser atendidos. Todos clientes são diferentes um do outro; então, a chave para você atender bem é ser maleável. O que faz da pessoa um bom profissional é a vontade de aprender, e não sentar em cima do que já sabe”, reflete Matheus.

Por envolver uma constante troca de informações somada ao contato olho no olho, a profissão de balconista pressupõe a evolução da capacidade de ouvir e de manter a atenção. É um processo, e tudo isso vem sendo positivo para Matheus.

“Acho que o atendimento no balcão, cara a cara, faz com que nos tornemos pessoas melhores, porque passamos a ser ouvintes melhores, mais atentos. Eu, particularmente, sou muito desatento; então, trabalhar assim nesses anos todos me fez um bem em relação a isso. Mas, resumindo, o mais importante é ter senso de adaptação, tanto ao mercado, como à clientela”, afirma.

Pelo que vimos até aqui, ao contrário do que diz, Matheus não parece nada desatento, embora isso também possa revelar uma virtude indispensável aos bons profissionais: a humildade.

Pandemia: aprendizado e a importância dos trabalhadores

Estamos diante do maior desafio do século XXI. Dizer que o novo coronavírus atingiu em cheio a indústria e o comércio é chover no molhado. Até mesmo essa entrevista, que poderia ocorrer presencialmente, aconteceu de forma virtual, tirando um pouco da essência olho no olho, tão cara também aos jornalistas.

Matheus nos conta como tem sido o trabalho nesse período, um ofício que jamais se interrompe, mas que fatalmente desacelerou.

“A gente atende por delivery, por WhatsApp e redes sociais aqueles que dependem do mercado automotivo: dono de oficina, mecânico e revendedor. Mas a gente sente falta daquele cliente final, um dono de carro, curioso, que quer fazer uma revisão e dar uma recauchutada no carro. Esse deixou de vir. E o comércio é um ciclo, uma corrente. No final, todo mundo depende de todo mundo”, lamenta.

O balconista prossegue o raciocínio, percebendo com mais clareza o seu papel nesse ciclo:

Outra coisa que eu percebi: o quão nossa economia é frágil e nosso sistema depende do trabalhador. E mesmo que eu me sinta um privilegiado por atuar numa empresa que olha pro funcionário como pessoa, a gente vê outras olhando pra sua mão de obra como se fosse só um número. Então, mesmo que o lucro seja importante nesse sistema, a gente precisa preservar a humanidade, pensar nas pessoas em primeiro lugar. Essas são algumas coisas que eu trago de aprendizado com a pandemia, e que eu creio que vou repensar muitos conceitos quando isso acabar.”

Recentemente, a Celinho Autopeças organizou uma distribuição de cestas básicas para a população mais carente em Pouso Alegre, em atividade que congregou outras lojas do ramo. Segundo Matheus, isso prova que “quando tem um inimigo em comum, a gente mostra que é um aliado do outro”.

As transformações estimuladas pela pandemia não se restringem às relações humanas no ambiente de trabalho. Elas também exercem poder sobre instâncias mais particulares, íntimas, fazendo algumas pessoas olharem para o que sempre esteve ali, debaixo do nariz, mas que por certa razão não despertavam o devido cuidado.

“Olha… eu não sou um cara muito família. Sou um cara meio distante, e não dava muito valor a isso. Mas fui percebendo, principalmente com os familiares mais velhos, como o contato humano é preciso. E faz muita falta. Meu pai chegou a contrair a Covid e até ser internado. É uma tensão muito grande. A partir do momento em que a gente precisa ficar isolado, quem é mais novo talvez não entenda o quão precioso é proteger quem a gente ama. E quando isso acabar, também vamos tirar coisas boas do que aconteceu. Lembrar de coisas que não deveria ter esquecido, aprender coisas que deveria ter aprendido”, reflete Matheus.

O que faz falta

Em Pouso Alegre, o Grupo Celinho promove anualmente o Encontro dos Mecânicos, evento tradicional que teve de ser cancelado pela segunda vez consecutiva devido à pandemia. Lamentando a impossibilidade de reunir profissionais do seu setor, Matheus destaca a importância da atividade.

“Era uma grande reunião, confraternizando com outros mecânicos, tomando cerveja, comendo tira-gosto, assistindo a uma palestra proveitosa. E a pandemia também tirou isso da gente. A gente pensa na boa relação; por isso, sempre estamos promovendo palestras para os balconistas e, principalmente, aos mecânicos”, explica.

O balconista também aproveita para reforçar o binômio teoria e prática, que, segundo ele, devem caminhar lado a lado, complementando-se mutuamente.

Minha experiência foi adquirida na prática mesmo, no aperto, na pressão do cliente; até na parte de logística, por exemplo, de ir atrás de uma peça que não tem, de conseguir contato. Mas a lapidação, o refinamento, tanto do atendimento como do conhecimento de qualquer profissional, vem de palestra e de curso de capacitação teórica. E eu adoro quando meu pai vem assistir a uma palestra do meu lado. É muito gratificante.”

Portanto, podemos concluir que o Encontro dos Mecânicos é uma oportunidade para apertar os laços entre os dois lados do balcão. Na edição passada desta revista, expusemos a visão dos mecânicos sobre os balconistas; agora, embora não seja o foco central da matéria, Matheus traz um pouco da ótica inversa.

“Acho que, de uns 10 anos pra cá, tem tido mecânicos mais ‘estudantes’. Ainda tem aquele ranço – tanto do balconista quanto do mecânico – de que ‘o que eu sei tá bom’ ou ‘eu aprendi assim, então é assim’, mas o número desses profissionais mais conservadores vem caindo bastante. A gente fica até surpreso. Os mecânicos estão cada vez mais procurando ferramentas que facilitam o serviço, capacitação de certos nichos como câmbio automático, airbag, essas coisas que requerem uma mão de obra mais específica. É legal ver como setor que você trabalha tem evoluído, e as pessoas têm evoluído junto com ele”, avalia.

Futuro

Projetar o futuro não é tarefa fácil; durante uma pandemia, então, parece definitivamente um tiro no escuro. Viver o agora, um dia de cada vez, muitas vezes já significa algo extraordinário. Diante desse questionamento, Matheus começa pela via do aprendizado.

“Com 25 anos, me acho jovem, apesar de estar há bastante tempo nesse segmento. E não me vejo fazendo outra coisa tão cedo, porque além de ser um ciclo, eu não sinto que aprendi tudo o que posso. Eu sempre quero aprender mais. Tenho essa gana de querer mais conhecimento, de me sentir capacitado, completo.”

No entanto, à medida que avalia os planos, o raciocínio passa a dar voltas, sem apontar para um norte definido.

“Tenho a ideia de ser dono do meu próprio negócio, talvez nem no ramo de autopeças. Eu penso muito em ajudar meu pai a ampliar o negócio dele, garantir uma renda para ele na velhice, coisa que meu irmão já vem fazendo. Óbvio que a gente tem pretensões. Eu estou num lugar muito bom, trabalhando com uma galera muito legal, com um pessoal que é realmente unido, nobre e competente. Então agora penso em evoluir aqui nessa área, com outros cargos. Durante muito tempo deixei isso de stand-by pra pensar no meu noivado, mas penso, sim, em trabalhar para uma grande marca.

Conclusão: Matheus tem seus ideais, embora considere-se uma pessoa “objetiva” e “não tão sonhadora”. Porém, em meio ao cenário de incerteza que domina o mundo em tantas frentes, essa objetividade passa a significar, mais do que nunca, pé no chão. Nesse caso, não existem respostas prontas.

“A dinâmica que se estabelece nesse segmento me permite ter diversas possibilidades, então a gente pode correr pra qualquer lado. E a gente também não sabe o dia de amanhã”, arremata.

Esta reportagem também encontra-se disponível na Revista Balconista S/A – Edição 29. Leia o material completo!

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