Balconistas

Do consultório às autopeças

Como o setor automotivo revolucionou a vida de Angra, uma balconista realizada.

A Avenida Governador José Lindoso, também conhecida pela população local como Avenida das Torres, é uma via arterial da cidade de Manaus, capital do Amazonas. Naquele logradouro nasceu a AM Auto Peças, loja idealizada por Anderson Matos de Albuquerque (34), onde trabalha com sua esposa Angra Lucas Omena (27), nossa entrevistada.

O comércio de autopeças no município era escasso antes da pandemia do Covid-19. Na época, Angra havia acabado de concluir a faculdade de odontologia, e dava seus primeiros passos na profissão. Entretanto, o sonho do marido sempre foi abrir a própria loja de componentes veiculares para atingir um público que não encontrava o serviço tão facilmente. O desejo surgiu após atuar como mecânico por 15 anos.

O início da jornada

O projeto começou cinco anos atrás, quando o casal vendia as mercadorias no porta-malas do carro como serviço da loja online montada no Instagram, até que em março de 2019 o sonho foi finalmente realizado. Era inaugurada a AM Auto Peças, especializada em colisão de veículos.

Nesse período, Angra abandonou sua carreira de dentista para se tornar não apenas balconista, mas também gerente e relações públicas da nova empresa.

“No início foi difícil, éramos só nós dois. Eu nunca me interessei por essa área. Para começo de conversa, eu nem imaginava entrar nesse ramo. Eu falava para o meu marido: ‘espero nunca precisar depender de peças para viver, porque eu vou morrer de fome, eu nunca vou saber vender’. Mas era medo”, conta Angra.

Sobre esse receio de se tornar balconista, Angra recorda a dedicação e as pesquisas, especialmente para manter as redes sociais ativas; afinal, fazer postagens das peças requer conhecer suas informações.

Isso não significava abrir mão da carreira para a qual se formou na universidade. No entanto, retomar aquele caminho era uma questão complicada devido à circulação do coronavírus em níveis alarmantes. Diante do cenário, o Conselho Federal de Odontologia decidiu interromper a atuação presencial dos dentistas, salvo emergências.

“Com a pandemia não era viável retornar para a minha profissão, mas até o momento eu estou me sentindo muito mais realizada hoje, trabalhando junto com meu esposo. Eu gosto de atender o público e lidar com pessoas. A vida me trouxe para cá, e hoje nós vivemos de peças e não de dente”.

No dia a dia da loja, Angra revelou passar por várias situações inusitadas. Em uma delas, recentemente, dois motoristas que colidiram seus veículos chegaram na AM Auto Peças extremamente bem humorados, brincando com a episódio e conversando em tom de coleguismo.

“Foi um atendimento super tranquilo. Foi interessante demais essa situação entre os dois. Normalmente, as pessoas ficam chateadas umas com as outras em casos de acidente. Mas eles não. Eu servi café e eles estavam super amigos”, relata.

O machismo na profissão

Mesmo em um mercado ainda dominado pelos homens, Angra revelou nunca ter sofrido preconceito direto; mas, quando atende o telefone da loja, é comum que a pessoa do outro lado da solicite a ela que chame um vendedor homem.

“Já chegaram no balcão também pedindo para eu chamar o vendedor. Eu digo ‘pois não, sou a vendedora’. Em seguida o cliente comenta: ‘É? Então vamos ver se você sabe mesmo’.”

Apesar desses questionamentos desdenhosos, a balconista diz contornar bem a situação. Isso porque, segundo ela, após passar a devida segurança de que entende do assunto, o cliente muda de postura e passa a respeitar o atendimento.

Angra também ressaltou que é difícil mulheres buscarem a loja presencialmente, optando por tirarem suas dúvidas pelo canal do Whatsapp. Porém, quando vão ao balcão, sentem-se bem mais confortáveis ao serem atendidas por uma pessoa do mesmo gênero.

“Pelo Whatsapp a gente busca dar ainda mais atenção, principalmente para as mulheres que não costumam entender tanto de autopeças. Uma vez, uma cliente perguntou se havia na loja o para-choque do Gol, e eu confirmei que tínhamos dianteiro e traseiro. Ela me perguntou: ‘mas o que é dianteiro?’. Nesses casos, um homem teria muito menos paciência para explicar”, lembra.

Bom atendimento é tudo

Atualmente, os antigos colegas dentistas de Angra tiram dúvidas com ela a respeito de componentes veiculares. O mesmo ocorre dentro da família e no círculo de amigos, onde o casal é sempre procurado para a compra de autopeças. Mas a entrevistada não deixa de criticar alguns fatores que considera pertinente.

“Infelizmente, a gente tem aqui em Manaus uma cultura de péssimo atendimento. Parece que estamos fazendo um favor quando precisamos de um serviço ou queremos comprar algo. Mas um dos pontos em que mais recebemos elogio é o atendimento de qualidade do nosso balcão. Prezamos pela simpatia, respeito e disposição. Querendo ou não, bater o carro é um transtorno, então tentamos fazer o cliente se sentir à vontade”.

Inspirando a concorrência

A AM Auto Peças se popularizou depressa na cidade, e, hoje, existem duas empresas concorrentes próximas ao local. Podemos dizer que esses negócios surgiram inspirados pela jornada de Angra e Anderson. De acordo com o marido, nada se cria; tudo se copia e evolui.

“Nossa loja explodiu muito rápido. No início, havia somente um concorrente que trabalhava com carros de luxo. Hoje existem várias autopeças, e até lugares que mexiam com sucata automotiva passaram a se denominar autopeças. Nós revolucionamos o mercado local”, orgulha-se Angra.

No balcão, realizada

Hoje, os olhos de Angra não brilham mais quando o assunto é retornar à profissão de dentista. Seu foco é fazer a AM Auto Peças crescer e torná-la conhecida em toda a região Norte.

“Um dia vamos chegar no nível das maiores redes. Eu sonho em expandir, sonho bem alto. Não pretendo voltar para a odontologia. Eu sonhava em me tornar dentista, mas não necessariamente ser realizada na profissão. Sou realizada hoje com o que fazemos.”

Para os clientes, ficam a confiança e a qualidade de atendimento, já que o intuito é solucionar o problema deles, e não garantir vendas a todo custo.

“Costumamos não dizer para o cliente voltar sempre porque, geralmente, isso significa que ele bateu o carro. Mas digo, se ele precisar, para lembrar da gente”, finaliza.

Essa reportagem também se encontra em nossa revista. Clique aqui para acessar a Balconista S/A – 32ªEdição.

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