Placa Preta: A Mercedes que ofuscou o Fusca
A amarela que não amarelou, mostrando que, quando o assunto é carro antigo, existe vida além da Volkswagen.
A vida de um apaixonado por carros dificilmente apresenta um trajeto linear. Curvas, obstáculos e até mesmo algumas paradas durante o caminho são necessárias. É o caso de Luis Risso, 28 anos, que trabalha com construções e reformas de imóveis, e tem como passatempo a fotografia de automóveis antigos em seu Instagram, o Ofuscando.
A página hoje estampa imagens de vários veículos, mas, como o próprio nome sugere, foi por causa do Fusca que ela nasceu, em 2013, quando Luis comprou um. A questão é que, em dado momento, o percurso ganhou uma rota alternativa, desembocando em um nova paixão cinco anos depois.
Trata-se de uma belíssima Mercedes-Benz 280S amarela, de 1976, com carroceria W116 – por sinal, a primeira da montadora com o farol horizontal, responsável na época por dar o atual status à consagrada Classe S.
Embora precise ser usado toda semana para conservar o bom estado, o veículo compensa ao demonstrar força e resistência invejáveis. Não à toa, seu motor M110, com 6 cilindros em linha e carburador quadrijet, também é chamado de ‘motor de tanque de guerra’. Outras características marcantes dessa Mercedes são o vidro manual, a direção hidráulica e o interior da cabine em couro marrom.
Largada
Cada história tem sua particularidade, mas grande parte delas apresentam o mesmo roteiro em suas origens: a influência da família.
“Meu pai sempre foi apaixonado, vivia trocando de carro. Um amigo dele era membro do Clube Chevrolet, e a gente começou a frequentar. A partir dali meu irmão decidiu: ‘quero um Fusca’, e comprou um verde tropical 1976 1300L”, conta Luis, que aproveitou para buscar o seu pouco depois, mas escolhendo o modelo com farol olho de boi e para-choque com poleiro.
Já a página Ofuscando era inicialmente tocada pelo irmão do entrevistado; Luis assumiu a direção em 2015.
A primeira curva
Volkswagen costuma ser a porta de entrada para a maioria das pessoas no universo dos carros antigos; portanto, a Ofuscando seguia um caminho natural dos apaixonados.
No começo, Luis e o irmão publicavam conteúdos essencialmente da Volks, em eventos com carros da marca. Mas, com o tempo, aquilo que era para ser um misto entre trabalho e lazer foi dominado pela obrigação em produzir os materiais, como se apreciar o ambiente das gravações não fosse tão importante quanto. Assim, era o saco, e não mais o tanque, que estava ficando cheio.
“Fazia conteúdos, eventos, mas muitas vezes eu deixava de curtir a atividade, conversar com as pessoas, com meus amigos etc. só para trabalhar. Depois, também passei a cuidar sozinho do canal, então fiquei de saco cheio e me afastei por uns quatro meses”, relata.
Retorno e descoberta: existe vida além da Volks
Mas não tardou para que Luis sentisse falta. Numa época em que estava trabalhando com fotografia na produtora de um amigo, ele retomou a dupla carros-fotos.
“E tornei a Ofuscando de vez um hobby. Se eu vou a um evento para ‘trabalhar’ e tirar fotos, ok. Mas se não estou a fim, e quiser só sentar para tomar uma cerveja com os amigos, eu faço.”
Reabastecido, Luis descobriu um novo universo além da Volkswagen. O ano era 2019 e o local, a segunda etapa da Copa Paulista de Rallye Histórico (CPRH), que reuniria automóveis antigos de várias marcas e modelos. A partir dali, a página deixava de ser restrita à Volks.
“Eu vi um vídeo da primeira etapa no YouTube; gostei e decidi ir. Então, chamei um amigo da época de escola para me acompanhar, e o dono dessa escola emprestou o Cadillac dele, um coupé De Ville 1973 preto. Ali foi um mundo novo, e eu quis entrar nele”, lembra.
Mas faltava um carro próprio para chancelar essa guinada, considerando que para participar do Rallye não bastaria qualquer veículo antigo. Por se tratar de provas que exigem bastante da máquina e do motorista, seria preciso um carro, além de clássico, confortável.
A resposta estava na Mercedes amarela, cujo modelo, até onde Luis sabe, só encontramos um além do seu no Brasil. Já o Fusca continuou em sua garagem; afinal, conhecer uma nova paixão não significa abandonar a outra.
“Em 2019 fiz todos os Rallyes com a Mercedes; levei pai, mãe, irmão e esposa (que na época ainda era noiva). Também comecei a trabalhar ainda mais no Ofuscando, inclusive arrumei um parceiro para ajudar.”
Quase virou um hatch
Todo carro antigo que se preze precisa de ao menos um causo interessante. O da Mercedes de Luis aconteceu quando ela passou a conviver com alguns problemas no carburador, que teve de ser trocado.
Após ficar um tempo encostada na garagem do irmão, mais espaçosa, o mecânico foi acionado para dar fim nessa história.
“Ficamos a tarde inteira mexendo, tiramos da garagem e deixamos na oficina. Fui pra casa, mas de repente ele me liga dizendo: ‘seu carro vai ter que ficar aqui um pouco mais. Aconteceu um acidente.’”
A tampa do porta-malas estava totalmente amassada, transformando a Mercedes numa espécie de versão hatch. O veículo desceu uma ladeira e bateu contra um muro – e poderia ser pior, pois por muito pouco ele não chegou à uma avenida bastante movimentada.
“Ele tinha estacionado o carro na porta da oficina, em uma ladeira, mas esqueceu o farol ligado. Quando percebeu, voltou para desligar, mas os botões do farol e do freio de mão são muito parecidos, e ele acabou apertando o errado. A sorte é que ele e um outro cara se enfiaram no carro e viraram o volante; senão iam parar na avenida. Daí ela bateu de lado no muro, o estepe segurou bem, e ele conseguiu frear”, explica Luis.
Parceiro de confiança, o mecânico arcou com os custos da reforma que durou cinco meses, sendo necessário trocar todo o painel traseiro e a lateral da porta direita. O saldo foi melhor do que a encomenda: nem parece que houve batida, exceto por um detalhe na curva do para-lama, algo que só os maiores especialistas conseguem perceber.
No entanto, como que num efeito cascata, o motor voltou a dar sinais de falha, quase deixando Luis na mão durante alguns passeios. Os Rallyes já eram impraticáveis, e desta vez, além do carburador, a válvula de admissão também precisava de reparos. Não teve outro jeito a não ser fazer escolhas para não pesar no bolso.
“Fiquei muito tempo com a Mercedes e o Fusca, e eu casei neste ano. Então, eu estava pagando casamento, reforma no apartamento, e precisava vender um dos carros. Como eu conheci outro mundo além da Volkswagen e gostei muito, decidi vender o Fusca. Até porque, onde eu encontraria uma outra Mercedes dessa depois?”, avalia.
Críticas ao movimento
Quando destacamos anteriormente que Luis estava de saco cheio com a rotina do Ofuscando, a razão não era apenas o trabalho em si. Segundo ele, os diferentes mundos dentro do universo dos carros antigos não giram em perfeita harmonia.
“Você pode pensar que todo mundo é unido, curte junto, seja qual for a qualidade e a marca do carro, mas não é sempre assim. Por exemplo: se eu tenho uma Alfa Romeo, não me misturo com quem tem BMW; se eu tenho um Volkswagen 60, não me misturo com quem tem um 80, e por aí vai. Deixei de frequentar muitos eventos por isso. Depois que fiquei só com a Mercedes, também aconteceu de não me deixarem ir com ela para um evento de Volks.”
O entrevistado destaca que sua opinião pessoal não deve se sobrepor à vontade de quem quer participar dos encontros, dando outro exemplo:
“Não gosto de carro rebaixado, mas se o cara tá ali feliz, é muito mais do que bem-vindo no meu evento. Outra vez organizei um evento, chamei um amigo e ele perguntou se o carro dele – um Golf colorido – se encaixava. Claro que se encaixa. É questão de vir e curtir.”
Recentemente, Luis encontrou um grupo de amigos que é sinônimo de pluralidade entre veículos, representando uma luz no fim do túnel que, lá na frente, pode significar uma mudança no modo de pensar.
“É um cara de Uno, outro com B20, BMW, também tem gente de Golzinho, de Belina, mais umas cinco Mercedes, todo mundo curtindo o carro do outro. Isso que é legal. Pelo menos, reparo que quem está entrando hoje já tem essa vibe de unir modelos diferentes. Então, essa ideia deve mudar”, finaliza.
Esta reportagem também se encontra na Revista Balconista S/A – Edição 34. Clique aqui para ler o material completo.
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