Placa Preta: Gurgel BR-800 1989

 Placa Preta: Gurgel BR-800 1989

A paixão que vem com o tempo, sem pressa.

Aconteceu de tudo em 2021, inclusive o marco de 30 anos desde a fabricação do último modelo do Gurgel BR-800, o que significa que, a partir de agora, toda a linha está apta a receber a placa preta de colecionador. Com o gancho dessa data redonda, a Balconista S/A não poderia deixar de prestar homenagem a esse veículo 100% nacional.

Imagine uma pessoa que não nutria qualquer paixão por automóveis – que, inclusive, tirou a carteira de motorista apenas aos 26 anos -, e que hoje, aos 57, não só tem um carro bem peculiar, como também fez questão de colocar uma placa preta nele. Pelo visto, são coisas que só o BR-800 podem explicar.

José Antônio do Nascimento, administrador de contatos e morador de São Bernardo do Campo (SP), preenche perfeitamente esse perfil e vai um pouco além. Isso porque, ao contrário de boa parte dos colecionadores, o paulista do ABC praticamente não dá descanso ao automóvel.

Acho que o carro precisa de história para contar. Não adianta só colocar a placa preta e depois ficar passando a flanelinha na garagem. Ele deve fazer parte do meu dia a dia. Então, é dessa maneira que eu cuido dele, procurando sempre dar a manutenção adequada e preservar a originalidade o máximo possível”, diz.

Apresentação ao Gurgel

O primeiro contato de José Antônio com a marca Gurgel ocorreu em 1987, na cidade de Altamira, no Pará, durante uma viagem a trabalho. Um dos companheiros de serviço – e morador local – levou alguns funcionários para jantar dirigindo um Carajás quatro portas.

“E ainda brincou comigo: ‘esse carro é de São Paulo; você é de lá e não conhece?’. Daí eu respondi: ‘amigo, São Paulo é muito grande!’”, conta, aos risos.

Um ano após essa apresentação, a montadora lançou o BR-800, o que logo chamou a atenção de José Antônio. No entanto, a única forma de adquiri-lo era mediante a compra de ações da Gurgel Motores S/A, numa ideia para capitalizar a companhia. Assim, dada a inviabilidade naquele momento, não restou outra alternativa a não ser esperar por 15 anos.

“Eu já tinha vontade de comprar um, mas era difícil, porque precisava comprar as ações para depois entrar na fila de espera. No fim das contas, só consegui o meu numa boa oportunidade que surgiu em 2004, depois de ele ter passado por dois donos. Mas acabou sendo bem barato.”

Razão para colocar a placa preta

Existem vários motivos possíveis e imagináveis para tomar decisões deste tipo. A paixão, pura e simples, é um deles. Mas também pode ser a construção de uma tradição familiar, como forma de garantir a presença do veículo nas gerações seguintes. Essencialmente, foi a este último que José Antônio se apegou.

“Quando cheguei em casa com o carro, num sábado de manhã, meu filho mais velho, com 7 anos na época, falou: ‘nossa, pai, quero esse carro quando eu crescer’. Daí, pronto, disse a ele que não iria vender nunca. Então, decidi que colocaria a placa preta quando batesse os 30 anos de fabricação, porque, nesse período, meu filho já estaria crescido”, recorda.

O curioso é que, hoje, o filho tem 25 anos e nunca tirou a habilitação; portanto, mais um fator que podemos classificar como tradição familiar. Se a CNH sair no ano que vem, o pacote estará completo, com criador e criatura se tornando aptos a guiar aos 26.

Mais original do que a encomenda

Alguns componentes do BR-800 foram fabricados exclusivamente pela Gurgel. É o caso do motor – 2 cilindros e 800 cilindradas – alimentado por um carburador de corpo simples, da suspensão dianteira Spring Shot, dos retrovisores e dos amortecedores. Os amortecedores, por sinal, saíram de linha ainda em 1990, mas seguem passíveis de revisão e troca, pois as peças ainda estão disponíveis no mercado.

Já outros itens servem diferentes marcas. O câmbio, por exemplo, é o mesmo do Chevette 4 marchas; a embreagem, por sua vez, divide-se em metade Fusca 1600 e metade Chevette, enquanto a ignição tem origem na Ford e as maçanetas da porta vêm da Fiat.

Quando comprou o BR-800, José Antônio precisou fazer mudanças para recuperar a versão de fábrica do veículo, além de refiná-lo ao seu gosto.

“Ele tinha as rodas do Gol; então, troquei pelas originais, assim como o sensor do motor. A roda do Gurgel não é mais fabricada no Brasil, mas consegui uma empresa em São Paulo que importa nas medidas certas. Também incluí alguns itens de segurança para o farol e coloquei uma buzina naval, só para chamar um pouquinho de atenção, numa brincadeira na hora de cumprimentar”, lembra, bem humorado.

Viagens

José Antônio participa de clubes de Gurgel desde 2018, e, no final do ano passado, conheceu o “Família Gurgel Litoral Paulista & Cia”, que realiza passeios a cada dois meses pela região – especialmente locais com natureza viva, plantas e cachoeiras –, bem como por outros estados do País.

“Eu adoro a natureza, cara. Então não pensei duas vezes em me juntar a eles. Primeiro, nós sempre fazemos um reconhecimento, e voltamos outro dia para o passeio completo. Conseguimos juntar mais de 20 carros.”

Por se tratar de áreas distantes do trecho urbano, com estradas de terra, a grande maioria dos veículos são ideais para o cenário, destacando-se os modelos 4×4 X12, Tocantins e Carajás. Além disso, o Família Gurgel congrega pessoas de diversas localidades.

Nosso grupo é do litoral, mas tem gente de fora. Eu mesmo sou de São Bernardo; meu amigo que me chamou é de Ribeirão Pires, e também tem pessoas do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais… É bacana, porque há toda uma troca de informações e conhecimento. E agora, na pandemia, o pessoal sempre usa máscara, cumprindo todas as precauções, porque com a vida não dá para brincar.”

E por falar em brincadeira, o grupo tenta aproveitar algumas ocasiões para, em meio ao próprio lazer, oferecer um pouco de diversão às crianças no entorno.

“Em dezembro, fomos a Ribeirão Pires para subir a Pedra do Elefante, inclusive com a distribuição de brinquedos para as crianças de comunidades mais carentes. Fiquei muito bem impressionado, porque o pessoal, além de se divertir e curtir o que gosta, faz o bem a outras pessoas. Isso é muito importante”, relata.

Recentemente, ainda no estado paulista, o Família Gurgel também viajou a Bertioga, no Litoral Norte, e Itariri, no Vale do Ribeira. Por fim, em agosto, o grupo participou do 4º Encontro de Fuscas e Automóveis Antigos, em São Lourenço (MG), que, ao todo, reuniu 14 veículos da marca.

A prova de fogo (ou de água)

No mês de julho, os amigos do litoral se reuniram para almoçar na região de Acaraú, em São Vicente (SP), próximo à ferrovia (linha Mairinque-Santos), em cuja margem há uma estrada de terra. Naquele dia, o solo estava bastante encharcado por causa de uma enchente, colocando à prova a capacidade do BR-800 em suportar um trajeto que talvez só os 4×4 conseguiriam.

“Foi a maior aventura que esse carro aqui já viu – e o dono dele também! Em dado momento, por causa do nível de água na estrada, eu confesso que a adrenalina subiu alto. Mas, mesmo sendo um carro com motor de dois cilindros, ele tem tração traseira, fibra de vidro; então, é um carro valente. Consegui acompanhar os X12, os Tocantins e os Carajás.”

BR-800 na BR-101

José Antônio gostou tanto dessa história de viajar que traçou um projeto para – espera ele – ser concretizado em breve. Chamado De BR-800 na BR-101, o plano consiste em percorrer toda a extensão da rodovia BR-101, desde Rio Grande (RS) até Touros (RN), ao lado do irmão.

A viagem será dividida em duas etapas: a primeira, saindo de São Bernardo – sua casa – rumo à Rio Grande (RS), passando pelo interior de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, além do estado gaúcho. De lá, começa a segunda parte em direção às terras potiguares.

Inicialmente, serão 53 pontos em 12 estados (8 cidades na 1a etapa e 45 na 2ª), com a estimativa de trafegar aproximadamente 10.000 km, incluindo os percursos locais. Vale destacar que a BR-101 é interrompida em Miracatu (SP), na BR-116 – Rodovia Régis Bittencourt – retornando somente em Garuva (SC), como continuação da BR-376.

Embora não tenha dado a largada oficialmente, o projeto tem um canal no YouTube, onde José Antônio publica gravações de algumas viagens feitas até aqui e adicionará as futuras aventuras na BR-101. É muito chão. Mas, se tem uma coisa a que esse BR-800 está acostumado, é rodar quase sem nenhum sobressalto.

“Quando comprei o carro, ele tinha 38 mil quilômetros; hoje, está com 253 mil”, finaliza.

Essa reportagem também se encontra em nossa revista. Clique aqui para acessar a Balconista S/A – 31ªEdição.

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